- “Rapaz, há quanto tempo!”
- “Pois é, que bom te ver!”
- “Poxa, a gente tinha que se falar mais!”
- “É mesmo, vou te ligar.”
- “Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.”
- “Não, pode deixar, vou ligar com certeza.”
- “Beleza, então. Adorei te ver!”
- “Eu também, te ligo então. Um grande abraço!”
Isso ou variações.
Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum; todos, literalmente: a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente essa: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir.
Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão: está plenamente configurada a situação constrangedora.
Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos (“te ligo, com certeza”) como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção: mentira ainda mais grave, gravíssima.
Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: “te ligo” passa a significar “gosto de você”, “vou ligar com certeza” traduz-se por “gosto muito de você”, e assim sucessivamente, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que “a linguagem pode mentir, mas a voz não”. Ora, justamente, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?
A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil configuração da amizade que costuma se formar numa das curvas que o tempo impõe a determinadas relações. Essa configuração ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada - conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação - para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse “algo da intimidade” se transforma em um afeto perfeitamente constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto à distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: os amigos já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes - não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.
Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que emerge efusivamente nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é: telefonar seria um erro, seria apostar demasiadamente na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos - que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: “Vou te ligar”. Quanto maior a consciência - ou a intuição - da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: “Vou te ligar, com certeza”.
Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, indiretamente, através dela: “Vou te ligar, com certeza” significa apenas “Gosto muito de você”, o não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: “Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir.” Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, penso, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear - o afeto incorruptível - não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem feito o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva - e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.
[in Banalogias, Francisco Bosco. Rio de Janeiro: Coleção Filosófica, Objetiva, 2007]